Por que estamos tão comovidos com o caso Charlie Hedbo?

A morte de cartunistas e colaboradores brancos franceses do jornal satírico Charlie Hebdo está mobilizando massas pelo mundo – até no Brasil tivemos manifestações ao melhor estilo “burguês indignado”. É impressionante como as palavras “brancos” e “franceses” têm relevância nesse contexto. Em “terras bárbaras longínquas” e – nem precisamos ir tão longe – até mesmo nas nossas periferias, onde vive uma suposta “escória da sociedade brasileira”, a morte é considerada, pelo imaginário ocidental padrão, algo banal, cotidiano. “Morre-se a torto e à direita, porque esse povo nem civilizado é – matam uns aos outros, ou são mortos graças às forças civilizatórias do bem”.

O etnocentrismo ocidental e a desumanização do outro chega ao ponto de negarmos-lhes até mesmo sensibilidade suficiente para sofrer com a perda de entes queridos, com o medo da morte, com a dor e a mutilação físicas e psicológicas, como se qualquer um que vivesse fora do dito “mundo livre e democrático” estivesse um pouco mais próximo da animalidade, incapaz de experimentar sensações e emoções humanas de forma plena.

No fundo, sabemos que a liberdade de imprensa e de expressão nos países democráticos não está realmente ameaçada por esse episódio. Vivemos perigos muito piores no passado – e, sejamos sinceros, muita gente no Brasil não dá a mínima para isso, chegando a pedir a volta da ditadura militar. A questão é: as Américas e a Europa estão horrorizadas porque 12 pessoas comuns, brancas e não pobres foram mortas brutalmente de forma premeditada em pleno centro de Paris, por motivos que não fazem sentido para nós.

Essas características desencadeiam um processo de identificação com as vítimas, principalmente por parte das classes médias desses países, que passam a se colocar no lugar delas, em um fenômeno que denominei síndrome do “podia ser eu” ou do “podia ser meu filho”. “Agora sim, eu, cidadão civilizado, honesto, trabalhador, movido pela razão ocidental ou pelas leis do deus cristão, estou puto da vida, porque sinto que isso poderia, ainda que remotamente, acontecer – veja só – comigo. Isso mesmo: COMIGO”.

A imprensa e as lideranças de países ocidentais também fazem seu dever de casa, dramatizando ao máximo o acontecimento, bem como adequando-o às suas agendas políticas. Por outro lado, atos horrendos ocorridos em determinados países são noticiados com pouco destaque, não movem multidões com velas, bem com não reúnem, em poucos dias, dezenas de líderes mundiais em uma cidade ainda sob o risco de ataques terroristas. Uma hipótese: se o imperialismo das grandes potências, disfarçado de guerra ao terror, resolver invadir, digamos, o Iêmen, alguém vai acender velas para os mortos dessa nova chacina?

Mais sobre o que Plínio Zúnica chamou de luto seletivo no texto Discutindo Charlie – Parte 1: “Je Suis Quem?”, publicado em seu blog.

“Estados Unidos pedem investigação ‘rápida’ sobre queda de avião da Malaysia na Ucrânia”

As palavras “EUA”, “investigação” e “rápida”, assim, juntas na mesma frase, me causam arrepios.

Nessa “investigação rápida” liderada pelo Ocidente, a Rússia já entra como culpada. A Ucrânia entra como vítima, e sai com um pretexto. O resultado é carta branca para medidas e ações mais ousadas (e quem sabe até violentas) por parte dos EUA, UE e OTAN contra a Rússia, de modo a provocar seu isolamento e enfraquecimento geopolítico e econômico.

[Tudo certo. Afinal, com isso, os Brics, que já começavam a abalar o status quo, perdem força como bloco, e o mundo se mantém como sempre foi e deve ser: dominado pelas tradicionais potências ocidentais do chamado “primeiro mundo”.]

Os principais veículos de abrangência internacional do Ocidente já fazem seu dever de casa e usam de artifícios sutis para insinuar a culpabilidade do governo russo. Culpada ou não, a nação russa já é o bode expiatório.

Assistindo ao noticiário brasileiro – sempre influenciado fortemente por veículos e agências internacionais americanas e europeias –, percebo cada vez mais evidente a tentativa da mídia de induzir a opinião pública a considerar, entre os potenciais suspeitos, o lado russo como “o mais inclinado a tal atrocidade” (mesmo sendo este o lado com menor chance de obter dividendos geopolíticos positivos a partir da tragédia). O resquício do sentimento antissoviético predominante na maioria da população ocidental deixa esse trabalho ainda mais fácil.

Independente da verdadeira identidade do culpado (o que, dado o caráter sumário e parcial das investigações, arrisco dizer: jamais saberemos com absoluta certeza), parcela suficiente do mundo já está convencida de quem deve pagar pela queda do voo MH17. E o potencial político e econômico desse convencimento é preocupante para o equilíbrio do poder no contexto internacional.