Candidato, esqueça minha família e cuide da sua. Grata.

Um espectro ronda a nação brasileira – o espectro da “destruição da família”. Ou algo do tipo.

Quem está acompanhando a propaganda eleitoral gratuita deve ter notado a frequente preocupação de candidatos com a tal “família”. A palavra foi mencionada, de forma abstrata e descontextualizada, mais de 20 vezes só na propaganda eleitoral local do DF desta segunda-feira (25/08) – inclusive por candidatos com não mais que 10 segundos para expor os termos de sua candidatura. Quatro segundos para o nome, quatro para o número e dois para a família. Não a dele. A sua.

A menção a esse tema é tão recorrente que, se alguém pouco familiarizado com o Brasil assistir ao horário eleitoral desse ano, se sentirá confrontado, de imediato, com uma realidade nacional preocupante: a galopante repressão às relações familiares tradicionais – imposta aos “cidadãos de bem” e combatida pelos “representantes dos interesses da família” – estaria colocando o país à beira do caos social e suprimindo o direito de se constituir matrimônio heterossexual e ter filhos.

Já quem vive neste país predominantemente cristão e com forte herança patriarcal, onde se estupram e subjugam mulheres, se matam gays e espancam lésbicas, sabe que isso não passa de um delírio coletivo de indivíduos incapazes de conviver com valores e estilos de vida diferentes dos seus. Essa obscura bandeira de defesa da família não tem como objetivo pleitear direitos. Sua premissa é, ao contrário, a batalha pela restrição dos direitos alheios – em geral, direitos já gozados pelos próprios adeptos e militantes dessa aberração ideológica. Trata-se, pura e simplesmente, de uma luta contra os direitos do outro.

“Defesa da família” é só uma maneira pomposa de dizer: “não consigo conviver com pessoas diferentes de mim”.

Apesar de anedótico, não é digno de discussão muito profunda o teor apocalíptico com o qual a questão da predominância ou não da família tradicional na sociedade brasileira é colocada no cenário político. A premissa de que a existência da família é melhor do que sua inexistência é baseada, em geral, em dogmas religiosos e culturais, e nunca foi seriamente racionalizada e debatida pelos grupos que a defendem. “A desintegração da família vai causar o caos social”. Mas, até agora, ninguém sabe muito bem por que.

Mais importante do que entender os argumentos fantasiosos criados para justificar a necessidade de se manter o núcleo familial nos moldes tradicionais e cristãos, é saber exatamente o que significa lutar por esse ideal. A “defesa da família” não diz respeito aos laços existentes entre pai, mãe, filhos e irmãos. Não fala sobre sentimentos de amor e carinho. Também não se relaciona com apoio e responsabilidade, ou com a dor e a saudade que causa a perda de um ente querido. E, muito menos, tem a ver com a busca do direito de escolher como viver. Por quê? É simples: não se pleiteia direito já conferido, consolidado e dominante. Quando alguém faz isso, está na verdade buscando outra coisa: cercear o direito do outro.

Um dos grupos mais prejudicados nessa história é a comunidade LGBT, que obteve alguns avanços nos últimos anos, como a união estável e o casamento civil, mas cuja luta esbarra constantemente na bandeira de “defesa da família”, solidamente representada no Congresso Nacional. Deriva desse conflito, ainda, o estímulo implícito à violência e discriminação contra homossexuais e transgêneros, a intolerância e as tentativas de orientação forçada a uma forma de vida que os integrantes dessa militância desprezível julgam “correta”. Kit macho, cura gay, comunidades de orgulho hétero em redes sociais e as barbaridades ditas por certos parlamentares da ultradireita são todas demonstrações cabais de que não estamos tratando aqui da “defesa da família”, e sim do “ataque à diversidade”.

Mas a discriminação por orientação sexual não é a única faceta desse fascismo travestido de espiritualidade. A “defesa da família” também implica a demonização do aborto e coloca obstáculos à liberação integral da mulher do ambiente doméstico e da função obrigatória e natural de esposa e mãe. Isso sem falar nas diversas ideias tipicamente reacionárias que vêm embutidas nesse pacotão de intolerância. Classismo, racismo, resistência a transformações sociais, saudosismo da ditadura, linchamentos – são alguns dos ideais malucos dessa doutrina “do cidadão de bem contra os depravados do mal”.

Defender algo já dominante: repressão ou só um discurso vazio do seu candidato.

Desconsiderando toda a conotação negativa que a “defesa da família” carrega consigo, e partindo do princípio de que não existem intenções discriminatórias neste posicionamento, é interessante analisar o que essa bandeira pode significar nas campanhas eleitorais de nossos candidatos.

Vamos aos fatos: existe algo mais vazio do que se dizer em defesa de uma instituição há séculos consolidada e dominante em nossa sociedade? Que ações poderiam ser implementadas sob uma rubrica tão ampla e vaga quanto esta? Para estruturar e fortalecer famílias, existem os programas de redistribuição de renda, o serviço social, os investimentos em educação. É possível melhorar os mecanismos de combate à violência doméstica, ampliar o programa Saúde da Família, garantir creches e escolas de qualidade. Todas essas temáticas têm nome, são bem definidas e estão aí para serem discutidas.

Portanto, caro eleitor, se o seu objetivo não é oprimir minorias ou eleger candidatos sem ideias, está na hora de deixar de lado a “defesa da família”. Tenho certeza de que, com tolerância, justiça social e um pouco de amor, cada um vai conseguir cuidar da sua.

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